Em seu livro Cosmos, Carl Sagan aborda o que seria uma possível reflexão de um ser sobre o que é afinal o universo. Embora não seja necessariamente o pensamento de um único ser humano, esta poderia ser perfeitamente a linha imaginária que liga o pensamento de vários seres humanos ao longo da nossa pré história. Segue abaixo o possível pensamento:
Comemos sementes e raízes. Nozes e folhas. E animais mortos. Alguns nós descobrimos, outros matamos. Sabemos quais os alimentos bons e quais os perigosos. Se provamos alguns, somos abatidos como punição por tê-los comido. Não temos intenção de fazer coisas ruins. Mas a dedaleira e a cicuta podem matar. Amamos nossas crianças e nossos amigos. Prevenimo-los destes alimentos.
Quando caçamos animais, também podemos ser mortos, feridos, pisoteados ou comidos. O que os animais fazem significa vida e morte para nós — como se comportam, quais as pistas que deixam, a época do acasalamento e procriação, a época de vaguear. Temos que saber estas coisas. Nós dizemos às nossas crianças. Eles dizem às deles.
Dependemos dos animais. Nós os seguimos, especialmente no inverno, quando há poucas plantas para comer. Somos caçadores e cobradores errantes. Chamamo-nos povo caçador.
A maioria de nós dorme ao ar livre, debaixo de uma árvore ou em seus galhos. Usamos pele de animais como roupa — para nos aquecer, cobrir nossos corpos e algumas vezes como cama. Quando usamos as peles dos animais, sentimos o poder deles. Pulamos com a gazela. Caçamos com o urso. Há uma ponte entre nós e os animais. Caçamos e comemos animais. Eles nos caçam e nos comem. Somos parte um do outro.
Fazemos ferramentas e nos mantemos vivos. Alguns de nos são bons em tirar lascas ou lâminas, afiá-las e poli-las, bem como achar pedras. Algumas rochas nós amarramos com tendões de animais a um cabo de madeira e fazemos um machado. Com ele batemos em plantas e animais. Outras rochas são atadas a longas varas. Se ficarmos quietos observando, podemos algumas vezes chegar próximo a um animal e enterrar uma lança.
A carne se estraga. Algumas vezes estamos com fome e tentamos não nos incomodar. Misturamos ervas com a carne ruim para disfarçar o gosto. Nós embrulhamos alimentos que não estragam em pedaços de pele de animal, em grandes folhas ou na casca de uma noz grande. É aconselhável separar a comida e guardá-la. Se comermos logo esta comida, alguns de nós sentirão fome depois. Temos que ajudar os outros. Por isto e por muitas coisas temos regras. Todos devem obedecê-las. Sempre tivemos regras. Elas são sagradas.
Um dia houve uma tempestade com muito raio, muito trovão e muita chuva. Os pequenos têm medo de tempestades. Algumas vezes eu também. O segredo da tempestade está escondido. O trovão é profundo e alto; o raio é breve e luminoso.Talvez alguém muito poderoso esteja zangado. Penso que deva ser alguém no céu.
Após as tempestades houve movimentos e estalos na floresta próxima. Fomos ver. Havia uma coisa saltando, quente, brilhante, amarela e vermelha. Nunca tínhamos visto isto antes. Agora a chamamos de ''chama". Tem um odor especial. De certo modo é viva. Come alimentos. Come plantas e galhos de árvore e até árvores inteiras, se você deixar. E forte, mas não muito esperto. Se acabar toda a comida, morre. Não consegue andar a distância de um disparo de lança, de uma árvore para outra, se não houver comida no caminho. Não pode andar sem comer. Mas onde há bastante comida, ela cresce e faz muitas crianças-chamas.
Um de nós teve um pensamento bravo e perigoso: capturar a chama, alimentá-la um pouco e torná-la nossa amiga. Descobrimos alguns galhos longos de madeira dura. A chama os comeu, mas lentamente. Nós podíamos segurá-los pelo lado que não tinha chama. Se você correr com uma pequena chama, ela morre. Suas crianças são fracas. Nós não corremos. Andamos e gritamos coisas boas. "Não morra", nós dizemos para a chama. O outro povo caçador olhou com olhos compridos.
Mesmo depois, carregamo-la conosco. Temos uma chama-mãe para alimentar lentamente para que não morra de fome.* A chama é uma maravilha e também é útil, certamente um presente dos poderosos. São eles os mesmos seres zangados das tempestades?
A chama nos mantém aquecidos em noites frias. Nos dá a luz. Faz buracos no escuro quando é Lua nova. Podemos fazer lanças para a caçada do dia seguinte. E se não estivermos cansados, mesmo no escuro, podemos ver os outros e conversar. Podemos ser feridos à noite. Algumas vezes somos comidos, mesmo por pequenos animais, hienas e lobos. Agora é diferente. Agora a chama afasta os animais. Nós os vemos ladrando baixinho no escuro, rondando, seus olhos brilhando na luz da chama. Eles têm medo dela. Nós não. A chama é nossa. Cuidamos dela. Ela cuida de nós.
O céu é importante. Ele nos cobre e nos fala. Antes de descobrirmos a chama, podíamos deitar no escuro e olhar para cima para os pontos de luz. Alguns deles se juntam e formam figuras no céu. Um de nós pode vê-las melhor do que os outros. Ela nos ensina as figuras e nos diz os nomes para chamá-las. Sentamos em roda, tarde da noite, e fazemos histórias sobre as figuras no céu: leões, cachorros, ursos, povos caçadores. Outras figuras são estranhas. Serão as figuras dos seres poderosos no céu, aqueles que fazem tempestades quando ficam zangados?
Na sua maior parte, o céu não muda. As mesmas figuras de estrelas estão lá ano após ano. A Lua cresce do nada, de uma lasca fina a uma bola redonda, tornando então ao nada. Quando a Lua muda, as mulheres sangram. Algumas tribos possuem leis contra o sexo em determinadas épocas do crescimento e enco-lhimento da Lua.
Algumas tribos riscam os dias da Lua, ou os dias que as mulheres sangram, em ossos de veado. Podem então planejar à frente e obedecer suas regras. As regras são sagradas.
As estrelas estão muito distantes. Quando subimos uma colina ou em uma árvore não ficam mais próximas. As nuvens ficam entre nós e as estrelas: elas devem estar depois das nuvens. A Lua, enquanto se move lentamente, passa na frente das estrelas. Depois podemos ver que as estrelas não ficam danificadas. A Lua não come as estrelas. Elas devem estar depois da Lua. Elas piscam. Uma luz estranha fria, branca e distante. São muitas no céu todo. Mas somente à noite. Pergunto-me o que serão.
Depois que descobrimos a chama, eu estava sentado próximo do fogo do grupo pensando nas estrelas. Lentamente me veio uma ideia. As estrelas são chamas. Então tive outro pensamento: as estrelas são fogos de grupo que os outros povos caçadores acendem à noite. As estrelas dão uma luz menor do que a do fogo do grupo. Então as estrelas devem ser grupos muito distantes. "Mas," elas me perguntaram, "como pode haver fogos de acampamento no céu? Por que os fogos do grupo e o povo caçador em volta da chama não caem em nossos pés? Por que tribos estranhas não caem do céu?"
São boas perguntas, que me confundem. Às vezes penso que o céu é metade de uma grande casca de ovo, ou de uma grande casca de noz. Penso que este povo, em volta dos fogos distantes, olha para nós, exceto que para eles parece que nós é que estamos em cima, e dizem que nós estamos em seu céu e se perguntam por que não caímos em cima deles. Penso que você me entende. Mas o povo caçador diz, "Embaixo é embaixo, em cima é em cima". É também uma boa resposta.
Há um outro pensamento que um de nós teve. Ele pensou que a noite é uma grande pele preta de animal jogada no céu. Há buracos na pele. Olhamos através dos buracos. E vemos a chama. Seu pensamento não é que haja chama em alguns luga-res onde vemos estrelas. Ele pensa que a chama está em toda parte. Ele pensa que a chama cobre o céu todo, mas a pele esconde a chama, exceto onde há buracos.
Algumas estrelas andam, como os animais que caçamos. Como nós. Se olharmos com cuidado por muitos meses, sabe-remos que elas se movem. Há somente cinco delas, como os dedos da mão. Vagueiam lentamente entre as estrelas. Se o pensamento do fogo do grupo for verdadeiro, estas estrelas devem ser tribos de caçadores errantes, transportando grandes fogos. Mas não vejo como estrelas andantes possam ser buracos em uma pele. Quando fazemos um buraco, ele fica lá. Um buraco é um buraco. Buracos não vagueiam. Também não desejo ser rodeado por um céu de chama. Se a pele cai, o céu noturno brilhará, como se houvesse uma chama em todos os lugares. Penso que um céu de chama nos comerá a todos. Talvez haja dois tipos de seres poderosos no céu. Os maus, que desejam que a chama nos coma, e os bons, que colocam a pele para afastar a chama. Temos que encontrar um modo de agradecer aos bons.
Não sei se as estrelas são fogos de grupo no céu. Ou buracos em uma pele através dos quais a chama do poder olha para nós. Às vezes, penso de um modo, em outras, penso diferente. Uma vez pensei que não havia fogos nem buracos, mas outra coisa muito difícil para eu compreender.
Repouse o pescoço em uma tora. Sua cabeça virarápara trás e você só verá o céu. Nem montanhas, nem árvores, nem caçadores, nem fogo. Somente o céu. Algumas vezes penso que cairei dentro do céu. Se as estrelas forem fogos de grupos, gostaria de visitar alguns outros caçadores, os que vagueiam. Então acho que seria bom cair. Mas se as estrelas são buracos em uma pele, fico com medo. Não quero cair em um buraco e dentro da chama do poder.
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